a PALAVRA

Ainda a manhã estava de joelhos, prestes a levantar-se, dirigiu-se a mim um vulto.
Pelo andar pesado, mas calmo, jurei que devia ser alguém de idade. Daquelas senhoras respeitáveis que se aperaltam todas, mesmo naqueles dias que não saem de casa. Cheirava a pó de arroz, baton vermelho e perfume antigo, bem distribuido pelo seu corpo meio cansado e indefenido, com aqueles vaporizadores com uma bola de borracha.
Mal me viro para trás, esfrego os meus olhos ainda meio ensonados e para o meu grande espanto não vejo ninguém. Para me certificar que estava realmente acordada, tirei o lenço do pescoço e o vento forte que senti num arrepio gelado, garantiu-me que não estava a sonhar nem no meu sétimo sono.
"Estranho" pensei. Ouvi mesmo alguém.
Entretanto lembrei-me daquelas histórias de espíritos passados que se contam em noites escuras quando estamos acampados, debaixo de céus estrelados e luas cheias. Mas há muito tempo que não ouvia esses disparates, e também há muito que não acreditava neles e por isso, já atrasada para o autocarro, continuei a andar.
Assim que no autocarro, abri a revista que tinha levado para ler, comecei a ver as palavras a movimentarem-se e a criarem novas frases, com sentidos completamente diferentes dos que inicialmente tinham.
Percebi logo que o fugaz encontro que tivera, foi sim com uma velhota, uma senhora que tão depressa se encontra aperaltada como toda suja e o mais rude e àspera possível: a Palavra.
Confrontei-me por momentos com o poder que Ela tem. Poder de união, e dissociação.
Compreendi que pode ser o que quiser, consoante os contextos que se insere, e como tal é um pedaço de barro por moldar, um pedaço de pedra informe por esculpir.
Quando bem encaixada e trabalhada pode ser o que quisermos. Podemos ser o que quisermos se nos fizermos acompanhar desta senhora. É preciso é sabermos relacionar-nos com ela.

Comentários

  1. ... e tu minha querida amiga, tens o dom da palavra!

    Há palavras doces
    palavras tristes
    e as que nada dizem.
    Há as que nos parecem uma coisa
    e querem dizer outra.
    Há palavras sussurradas
    mas audíveis
    e outras gritadas
    que não se ouvem
    Palavras que mentem
    e as que ao serem ditas
    por vezes nos magoam.
    Também há palavras
    que ditas, mal nos soam
    e nos parecem esquisitas.
    Palavras podem ser só palavras,
    ou podem ser pura emoção se sentidas.

    Escrever e brindando às palavras, vamos (não) dizendo o que nos vai na alma, também.

    Usurpei o teu espaço, as minhas desculpas, mas saiu assim sem apontamento prévio e aí tratei de deixa-las aqui, porque há quem diga que "palavras... leva-as o vento".

    Beijo e kandandos meus.

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  2. O teu sentido texto transportou-me à simplicidade (que só ele soube ter) de Eugénio de Andrade:
    São como um cristal,
    as palavras.
    Algumas, um punhal,
    um incêndio.
    Outras,
    orvalho apenas.

    Diz o povo que «palavras, leva-as o vento». Neste particular não estará totalmente certo: como explicar a imortalidade dos belíssimos escritores da nossa Língua Portuguesa com quem tenho a felicidade (ossos do ofício) de conviver diariamente, alguns deles tantos séculos depois de nos terem deixado? A palavra pode ter uma força incrível, marcar-nos através dos dias, o tal punhal, o incêndio, ou ser «orvalho apenas»... Dá-nos, pois, infinitas possibilidades.
    Até já:)

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