mais um dia I




As chaves estão na mala, casaco na mão, pequeno-almoço engolido num trago rápido quase automático. Estava na hora de correr para o frio cortante da rua, para o repetido percurso de transportes públicos rumo a uma rotina que parecia recomeçar e não havia meio de se esgotar. “A rotina não se esgota, mas esgota”. Era o que diziam os
seus pés, enquanto as pálpebras pesadas ainda inebriadas por um despertar
repentino, se abriam para que os olhos conseguissem encontrar um pequeno espaço
onde se pudesse sentar no comboio.
Já sentada, mas com a consciência de que seria um descanso
fugaz - visto que teria de trocar de linha numa estação seguinte - tem ainda tempo
para, num gesto rápido e praticamente mecânico, pegar no batom rosa-salmão e o passar nos
lábios para aparentar num look mais delicado um pouco da feminilidade que a
vida rotineira de horários e correrias por vezes lhe tirava.
Desde sempre gostara de observar as pessoas no comboio:
algumas com um ar muito sério, à espera; outras a ouvir música e perdidas no
seu pensamento, mas as suas favoritas eram aquelas que encostadas ao vidro, ou
estiraçadas para a frente dormiam e roncavam em sono profundo, apresentando ao
mundo inteiro uma panóplia de caretas capazes de animar o caminho para o
trabalho.
No comboio seguinte, não há lugar para se sentar. A primeira
imagem que lhe surge neste momento de extremo desconforto é o seu sofá preto,
confortável, onde já dormira longas sonecas. Como gostava que todos os
transportes públicos tivessem sofás onde as pessoas pudessem comodamente chegar
aos seus locais de trabalho. “Havia de minimizar bastantes problemas, pensara.
Os trabalhadores bem-dispostos, lucram mais: decerto havia algum estudo
americano sobre isso”.
Mas como estava a chegar ao seu destino e os pensamentos
altruístas não tinham mais qualquer tipo de utilidade só lhe restou atirar-se
para o fluxo da multidão na esperança de não ser atropelada, pisada ou
empurrada como é costume.

(continua...)

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